segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Contra o enfático

Dormi todo o dia e acordei às oito da noite. Cozinhei dois bifes de vaca com molho de cerveja. Comi uma tangerina no terraço. Tinha vontade de mandar as cascas por cima do muro que delimitava o terraço seguinte. Mas o acto de enviar cada uma das cascas por cima do muro só podia ser visto como má vizinhança, pouca educação, sempre alguma espécie de grosseria. Nunca ninguém pensaria no que na realidade significava: um gesto contra o enfático.

Fumei um cigarro à porta do terraço, que dava para cozinha, e perguntei-me pelos corvos desaparecidos. Habitualmente grasnavam desde os ramos do pinheiro. De novo, pensei em mandar a beata apagada para o terraço dos vizinhos (que não eram mesmo nada simpáticos). Fiz aquela pergunta elementar: se gostava que me fizessem o mesmo, concluí que se alguém o fizesse, se encontrasse cascas de tangerina ou pontas de cigarro no meu terraço, seria por falta de urbanidade; não existe muita gente com capacidade para discursos mínimos, epígrafes contra o enfático e o solene. Acabei por considerar que a linha que separa a falta de educação do discurso mínimo mais desistente é realmente insignificante. Pensei nas feministas que mostram as tetas por dá cá aquela palha.

Mas depois já nada disso teve importância. O que me ocupou foi tomar duche, escolher a roupa, vestir-me, perfumar-me, recolher as chaves do carro, o isqueiro, a carteira e o telemóvel. Saí e fui directo a um bar com uma carta onde anunciavam, pareceu-me mesmo, perto de mil cocktails. Pedi dois Tom Collins e bebi logo um. Depois fiquei sentado ao balcão a ler o El Cultural, revista que sai à sexta-feira com o El Mundo, onde se publicavam dois artigos sobre um livro do Roberto Bolaño. Uma noite ela leu  em voz alta um conto incluído no Llamadas telefónicas ou no Putas asesinas, não me lembro ao certo, e finalmente decidiu que não gostava da escrita, um mero encadear leviano de frases que esbarrava na superfície das coisas. Vidas utilitárias ainda que de certa forma corajosas. Um desfilar de situações protagonizadas por personagens sem medo, é certo, mas também sem rumo certo (e outra vez o discurso contra o enfático, que questiona a certeza). Uma imaginação colossal e um movimento constante. Figuras que coincidem num mesmo ponto e logo divergem sem encontrarem ocasião para chegar a uma conclusão. Ela preferia Guy de Maupassant ou Katherine Mansfield. E não deixava de ter razão. Mas eu retiro sempre alguma coisa de positivo de gente que joga tudo de uma vez. Sobretudo agora aqui onde estou, consciente do sem sentido, não me posso dar ao luxo de ignorar um autor como Bolaño. O livro chamava-se Los sinsabores del verdadero policía. Um dos críticos, depois de deixar claras as qualidades incomuns, a ousadia e a liberdade dos escritos de Bolaño, sublinhava que não se tratava, como pretendia a edição, de um romance ou de um romance inacabado. Tratava-se de um conjunto de materiais em distinto estado de evolução recolhidos simplesmente para que nada de Bolaño ficasse por publicar. O crítico não gostava de armários perfeitos com as gavetas etiquetadas. Bolaño escrevia muitas vezes a partir do meio e interrompia-se quando entrevia uma ideia em movimento num caminho paralelo. Como os miúdos que se empoleiravam nos eléctricos em marcha para não pagar bilhete ou para se divertirem sem mais. É preciso muita destreza, anular a diferença de velocidades com risco de queda. Aproveitar a boleia, acidental. Manter a vida fragmentada no plano do objecto acabado.

Quando abandonei aquele que tinha sido o nosso lar durante cinco anos obriguei-me a descer as escadas a correr. Saltei alguns degraus de dois em dois. O impacto da porta a fechar-se atrás de mim pareceu prevenir-me de que a partir daquele momento já não era bem-vindo. As ruas estavam cobertas por um manto de folhas. Não havia vento e as folhas compunham uma camada uniforme. Já tinha as malas todas no carro e acelerei. Pensei que a única coisa que poderia afastar o eco das últimas palavras seria aquele tipo de trabalho físico, continuado e repetitivo, que lentamente vai absorvendo as forças e sugando a energia, chegando-se ao final do dia sem conseguir dar atenção a mais nada que não seja proporcionar descanso ao corpo. Desejei estar incumbido da limpeza de três ou quatro quarteirões. Varrer os passeios, limpar os canteiros das flores, juntar vários montes de folhas, distribuí-los a cada 30 metros e depois recolhê-los para uma carrinha de caixa aberta. Materializar a inutilidade quando o motorista arrancasse de repente e as folhas voassem. Esse era o meu estado de ânimo. Uma sensação de inutilidade completa. Podia esforçar-me que no final o resultado era o mesmo: como se não tivesse agido, como se estivesse parado todo o tempo.

As declarações eloquentes, que procuram ter um efeito, influência no leitor ou no ouvinte, nunca me deixo prender por elas. Não leio jornais. O tempo passou e as histórias de amor acabaram. Deixei de ter essa tábua de salvação. Não foi uma decisão consciente mas todo o meu comportamento ulterior derivava dessa recusa. Faz todo o sentido, se páras para pensar em determinadas experiências que te afectaram e não podes ultrapasar.

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